16 setembro 2007

DELETAR

Nada mais apropriado para algumas circunstâncias do que a utilização do verbo deletar.
É uma ação poderosa e radical. Vai muito além do esquecer, deixar no limbo, perdoar. Podemos esquecer um mau-trato, deixar em quarentena uma preocupação, perdoar uma ofensa. Mas deletar é apagar de forma irreversível.
Associar idéias é uma das minhas predileções e acabo de lembrar de um trecho escrito pelo Affonso Romano de Sant’Anna, poeta mineiro: “Estou aprendendo a enterrar amigos, /·corpos conhecidos, /e começo as lições ·de enterrar alguns tipos de esperança. /Ainda hoje /Sepultei um braço e um desejo de vingança. /Ontem, fui mais fundo: /Sepultei a tíbia esquerda /E apaguei três nomes da lembrança”.
Comecei a perceber, em mim, uma habilidade que desconhecia possuir. A capacidade de deletar. E descobri tal aptidão, na tarefa a que me propus de organizar álbuns de fotografias e caixas de cartas.
A primeira reação, confesso, foi de susto. Como é possível alguém deletar fatos, fotos, memórias, pessoas? Seria uma anomalia, um pecado capital, além dos sete conhecidos? Isso é novidade da tecnologia atual ou é um nome diferente para um ato praticado desde sempre?
Afora as conotações de um autojulgamento muito rígido, constato que querendo ou não, fui apagando palavras maldosas, gestos grosseiros, lembranças dolorosas, despedidas indesejadas. E deletei algumas pessoas também. Mandei tudo para a lixeira do meu computador interior e esvaziei a carga nociva que ocupava um espaço pesado nos meus arquivos. A limpeza ocasionou a abertura de novos arquivos para acomodar o que é bom, bonito, agradável.
Tudo o que nos magoa, nos machuca e fere deve ser deletado. É simples. Acontece sem muito esforço. É só descobrir a tecla certa no cérebro e pressionar delicadamente, sem muito esforço.
E o mais interessante nisso é que, ás vezes, o deletar é inconsciente. Só percebemos que apagamos alguém, quando não conseguimos lembrar o nome ou do semblante. Quando gestos e palavras estão sepultados de tal forma que nem sequer vêm à lembrança, como se nunca tivessem acontecido.
Perdoar é atitude nobre. Alguns perdoam, sem guardar rancor, no exercício do cotidiano, mas conservam na memória o acontecido.
Porém deletar vai mais além. Deletar é esquecer para sempre. Não tem volta. É como se nunca tivesse ocorrido o dissabor, a rejeição, o desamor, a ofensa. É mandar para o espaço tudo o que atrapalha, incomoda, envenena.
Deletar é, de certa forma, separar o joio do trigo na peneira do bom senso e discernimento.
Talvez, a maturidade aprimore essa capacidade, que constantemente é confundida e associada a sinal de senilidade. Eu discordo porque penso ser a constatação da sabedoria que, ao longo e uma vida, foi adquirida a custa de pesados e inúteis arquivos carregados sem necessidade.
Ainda bem que maioria dos jovens usa e abusa do verbo deletar. Com o tempo, irão usá-lo com mais precisão e acuidade em suas vidas e serão adultos mais leves com certeza.
Depois dessa limpeza geral que fiz, estou me sentindo uma folha de outono levada pelo vento ao encontro da primavera.
Deletar foi preciso.

Obs: (DELETAR faz parte das novas palavras incluídas na recente edição do "Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa", que foi lançada pela Academia Brasileira de Letras. Existe, também, o verbo DELIR que significa apagar).

Um comentário:

GaRa disse...

Boa tarde!
Seu Blog está ótimo. Os textos são reflexivos e há poesia por toda parte. Parabéns!
Abraços,
Gacy

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