24 agosto 2010

ACERVO DE MEMÓRIAS

O dia amanheceu ensolarado com um vento frio espalhando folhas. Contrariando as previsões meteorológicas, não choveu.


Senti vontade de caminhar pelas calçadas retilíneas da cidade que eu bem conheço. Tenho aqui raízes, nascidas de sementes que o vento trouxe de outras paragens e que germinaram em afeto e admiração. Inexplicável fenômeno de me saber aquerenciada nesse pedaço de chão.

Voltei no tempo com rapidez. A rapidez que a imaginação permite.


Saí determinada a buscar o que eu, ainda, poderia encontrar no arquivo de memórias do meu computador mental.

Voltei às ruas em que passei pela primeira vez há mais de trinta anos com a intenção de rever o passado. Meus passos eram feitos de carinho puro porque tive medo de pisar forte e machucar alguma lembrança. Queria acariciar no coração as cenas que desfilavam frente aos meus olhos com uma precisão invejável.

As calçadas são as mesmas, apesar de alguns retoques. Estão impressas nelas, e em mim, idênticas cicatrizes. Essa cidade e eu somos muito parecidas. Suas rugas estão costuradas na minha pele, crescem no meu corpo, deslizando em minhas veias como um rio de muitas vertentes. Somos constantes e fiéis, simetricamente amoldadas aos que passam por nós, com afeição ou desprezo. Trazemos a obstinação da permanência. Ela, de pedra; eu, de carne, nos identificamos como quem dança ao som da mesma música num abraço envolvente de paixão.

No meu trajeto, as paredes das casas antigas pareciam querer revelar segredos. Pensei nos arqueólogos quando se depararam com escritos mais velhos do que o tempo e se puseram a decifrá-los. Impossível, para mim, descobrir, cientificamente, o que cada porta e janela trazem impressas em suas dobradiças e batentes. Deixei, pois, que os ouvidos da alma sorvessem atentos os mistérios que se quisessem tornar descobertos nas entrelinhas do meu caminhar. As casas antigas têm vida de muitas vidas como se fosse uma arca onde guardados ficaram todos os sonhos das almas que por elas já passaram. Quantas dores, quantos passos, quantos soluços e amores trazem seus nomes gravados nessas paredes eretas? As casas antigas caladas carregam todo o segredo do tempo que já se foi. As casas velhas escondidas conservam uma luz sempre acesa como quem prepara e espera a festa, a grande festa da volta dos sons queridos de um tempo em que havia vida.

O cenário do casario que se veste de cores novas, que se restaura por dentro e por fora, resgatando o belo de um patrimônio inestimável, trouxe a minha presença uma certeza. Tenho tempo para viver mais emoções e criar outras memórias para retornar a essas ruas. Memórias do que é feito agora. Memórias dos pedaços que, como cacos de vidros coloridos, formam pouco a pouco, um vitral transparente de lembranças, através do qual pode se ver a silhueta da cidade em que se enraizou o meu coração.

Na manhã ensolarada, Pelotas se enfeitou para os meus olhos com calçadas de ouro, paredes de esmeralda e ruas de cristal como a Jerusalém dos tempos bíblicos, descortinando a graça que vive em suas artérias como legado de uma época que pode se renovar a cada dia e sempre.



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