Tenho
incontida admiração, com conhecimento de causa, pelas marcas que ficam
impressas nos olhos de quem sofreu e chorou intensamente. Gente que foi
mutilada na alma e perdeu pedaços, teve amputados os braços dos sonhos e as
pernas da alegria. Gente de quem sou cúmplice.
Consigo reconhecer na multidão a face
marcada e identifico o olhar que passa rápido por mim, deixando a nítida
impressão de que se sabe portador da mesma convalescença de machucaduras.
Volto à cabeça na direção desse olhar
fugaz. Impossível chamá-lo porque desconheço seu nome. Só sei o seu olhar.
Vez ou outra, consigo ficar frente a
frente, em meio ao burburinho dos passantes, com um olhar lancetado e,
instantaneamente, se estabelece um reconhecimento mútuo.
Somos sobreviventes das batalhas que a
vida se encarregou de travar em nosso íntimo. Perdemos alguns combates e
adquirimos inúmeras cicatrizes. Continuamos, entretanto, valentes e
persistentes a empunhar bandeiras.
Desistir, nunca!
Aos trancos e barrancos seguimos
respirando como se a alternativa contrária fosse o fim da guerra, a capitulação,
a rendição.
Mas não se pode entregar o território
já conquistado. Custou-nos lágrimas e sangue que, com dores e hemorragias
múltiplas, fomos tratando de suturar com a linha das noites sem sono e a agulha
dos abismos da solidão.
Nossos olhares trazem as sombras
indeléveis do que foi costurado em nós. E quando nos são arrancados alguns
pedaços, as lágrimas são o bálsamo cicatrizante.
A trajetória de cada lágrima fica
impressa, assinalando caminhos na direção de uma luz mais clara. Podemos enxergar mais longe, mais fundo.
As fronteiras do mundo não nos
detêm. Já viajamos por terras inóspitas
e adversárias. Já enfrentamos moinhos e cavaleiros armados. Já fomos feridos e
magoados.
As cicatrizes continuam translúcidas no
olhar e, assim, quando nos deparamos com alguém que vê além e através, nos
consolamos com a sensação de não estarmos tão sós.
Se algum olhar com nódoas fica ao
alcance do meu olhar, a linguagem que falamos é inaudível mas, relata
distâncias e ausências, tempestades e desilusões. Tão semelhantes são as
realidades vividas!
Tudo segue na rotina do sempre. Um
olhar semelhante, porém, faz toda a diferença.
Os sinais dos mutilados na alma são
invisíveis, anônimos, incógnitos. Misturam-se como fermento na massa da
humanidade na dissimulação de um olhar, que fala todos os idiomas, sem
balbuciar um som sequer.
Cicatrizes. Nada mais do que
cicatrizes.
Como bem explicitou a poeta: "Mas
posso te afirmar com segurança/ que a dor nos deixa apenas como herança/ a
cicatriz do que ela nos causou./ Perdoa, pois, se há sombras no meu rosto/ são
as marcas antigas de um desgosto/ que o tempo resolveu cicatrizar." (Maria
Theresinha Boscacci de Carvalho).
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