01 setembro 2013

CICATRIZES


          Tenho incontida admiração, com conhecimento de causa, pelas marcas que ficam impressas nos olhos de quem sofreu e chorou intensamente. Gente que foi mutilada na alma e perdeu pedaços, teve amputados os braços dos sonhos e as pernas da alegria. Gente de quem sou cúmplice.
         Consigo reconhecer na multidão a face marcada e identifico o olhar que passa rápido por mim, deixando a nítida impressão de que se sabe portador da mesma convalescença de machucaduras.
         Volto à cabeça na direção desse olhar fugaz. Impossível chamá-lo porque desconheço seu nome. Só sei o seu olhar.
         Vez ou outra, consigo ficar frente a frente, em meio ao burburinho dos passantes, com um olhar lancetado e, instantaneamente, se estabelece um reconhecimento mútuo.

         Somos sobreviventes das batalhas que a vida se encarregou de travar em nosso íntimo. Perdemos alguns combates e adquirimos inúmeras cicatrizes. Continuamos, entretanto, valentes e persistentes a empunhar bandeiras.
         Desistir, nunca!
         Aos trancos e barrancos seguimos respirando como se a alternativa contrária fosse o fim da guerra, a capitulação, a rendição.
         Mas não se pode entregar o território já conquistado. Custou-nos lágrimas e sangue que, com dores e hemorragias múltiplas, fomos tratando de suturar com a linha das noites sem sono e a agulha dos abismos da solidão.
         Nossos olhares trazem as sombras indeléveis do que foi costurado em nós. E quando nos são arrancados alguns pedaços, as lágrimas são o bálsamo cicatrizante.
         A trajetória de cada lágrima fica impressa, assinalando caminhos na direção de uma luz mais clara.  Podemos enxergar mais longe, mais fundo.
         As fronteiras do mundo não nos detêm.  Já viajamos por terras inóspitas e adversárias. Já enfrentamos moinhos e cavaleiros armados. Já fomos feridos e magoados.
         As cicatrizes continuam translúcidas no olhar e, assim, quando nos deparamos com alguém que vê além e através, nos consolamos com a sensação de não estarmos tão sós.
         Se algum olhar com nódoas fica ao alcance do meu olhar, a linguagem que falamos é inaudível mas, relata distâncias e ausências, tempestades e desilusões. Tão semelhantes são as realidades vividas!
         Tudo segue na rotina do sempre. Um olhar semelhante, porém, faz toda a diferença.
         Os sinais dos mutilados na alma são invisíveis, anônimos, incógnitos. Misturam-se como fermento na massa da humanidade na dissimulação de um olhar, que fala todos os idiomas, sem balbuciar um som sequer.
         Cicatrizes. Nada mais do que cicatrizes.

         Como bem explicitou a poeta: "Mas posso te afirmar com segurança/ que a dor nos deixa apenas como herança/ a cicatriz do que ela nos causou./ Perdoa, pois, se há sombras no meu rosto/ são as marcas antigas de um desgosto/ que o tempo resolveu cicatrizar." (Maria Theresinha Boscacci de Carvalho). 

Nenhum comentário: