03 abril 2010

GENTE QUE FICA, GENTE QUE PASSA

Com a ajuda inestimável da infinita capacidade de memória do computador interno do cérebro, é possível acionar dados registrados de forma aleatória e não, obrigatoriamente, sucessiva.
Até onde se alcança a lembrança dos fatos da existência, desde as primeiras impressões até as atuais, basta situar uma época específica, que, num passe de mágica, personagens dos mais variados aparecem. E é bem simples compreender tais aparições. Pessoas que cruzaram trajetos comuns e ficaram inseridas no enredo de que se é protagonista.

Quando não se consegue lembrar de algumas pessoas, se atribui, rapidamente, o lapso a uma falha da memória, justificada pelo excesso de informações, ou por um problema de cansaço mental. Justificativas se sobrepõem para desculpar a lacuna, que nada mais é do que a clara evidência de que só registramos o que ficou e apagamos o que passou.
Pois, exatamente, pensando nesse detalhe fica evidente que uma linha invisível separa gente que fica de gente que passa.
Gente que até pouco convívio teve com nosso dia a dia e, mesmo assim, é constantemente, lembrada. Gente que fica na memória, sinalizando sua passagem com o carimbo de permanente. Pertencem ao grupo raro de pessoas que chegaram para ficar. Pouco importa o tempo, a distância, os descaminhos, o parentesco. Pessoas que tem nome, identidade, comprometimento com a parte mais íntima dos sentimentos que despertaram com a sua presença. Estranhos peregrinos numa mesma estrada que se achegam para uma conversa e partilham um pedaço de si mesmos para criar laços sem medo de envolvimento. Porque gente que fica é gente destemida, que não represa emoções e nem recusa oportunidades de mergulhar fundo nas águas desconhecidas do outro.
De forma oposta, gente que passa não deixa rastros. Passa mesmo. Como o vento antes da tempestade ou a brisa de um dia primaveril. É gente provisória que nunca disse a que veio. Escorregam das relações como crianças num parque de diversões, que correm entre um e outro brinquedo. Gente que não sabe criar raízes, que desconhece a cumplicidade, que tem medo de mostrar o lado de dentro. Submergir num relacionamento? Nem pensar. Fora de cogitação. Pessoas que ficam sempre na superfície de todas as situações mesmo tendo a oportunidade de conviver durante muito tempo com alguém. Depois que passam, ligam para cumprimentar por alguma data especial, convidam para um jantar, numa extrema polidez e aparente gentileza. Porém, nada mais, além disso. Pessoas assim deixam de lado o melhor da festa na vida. E o pior é que esse tipo de gente se acha feliz, julga que escolheu a melhor postura. Mas, pessoas que passam não deixam registro no arquivo da existência porque pertencem ao grupo dos não lembrados.
Felizes são os que, ao acionar as lembranças, ficam com a casa cheia no meio de uma mistura de sons, risos e fisionomias que atravessam a ponte do tempo e se reúnem para o aconchego que justifica uma vida inteira. Têm o privilégio de possuir muita gente que ficou e nem dá para notar o vazio deixado pelos que passaram.
Que tenham sempre o visto de permanência todas as pessoas que queiram ficar e que seja dada as que, furtivamente, passam, a mera concessão de passageiros em trânsito. A memória se encarrega de selecionar os viajantes.
E o domingo de Páscoa proporciona uma viagem na memória para renovar e inovar arquivos.
Tempo de recomeçar, reavaliar e separar o que deve ficar e o que precisa passar.

3 comentários:

Doris disse...

Maria Alice linda demais esta crônica "Gente que fica,Gente que passa" e assim aconteceu conosco porisso tenho certeza que tenho passaporte para ir e vir para conversarmos vez que outra.Já viste história mais parecida do que nosso encontro em Torrance?Duas avós conhecendo suas netas americanas passeando numa linda manhã,que vamos combinar, num lugar tão sem brilho que nem aquele,muito longe das manhãs lindas aqui da nossa terrinha.E se não bastasse este encontro furtivo e breve curtimos juntas um terremoto claro q um 5.4 na escala mas não deixa de ser um episódio a + prá contarmos pra nossas netas não concordas?
Adoro ler tuas mensagens e quem sabe numa vinda à Porto marcamos um encontro que achas da idéia?é só me avisar e o encontro tá marcado.
Um beijão
Doris

Anelise Fróes disse...

Maria Alice,
E não é que finalmente te ler me trouxe a coragem necessária para um comentário aqui, gesto que venho adiando desde o instante em que te descobri na rede?
Sim, te leio desde aquele instante e antes ainda, como deves saber ainda que apenas em meus devaneios saudosos de momentos em que estivemos próximas...
Mas te leio nas páginas já amarelas do livro que nos aproximou, te leio nas fotos tão antigas em que sorris de vestido azul marinho, sob o sol de Montevideo, te leio na dedicatória que fizeste a mim, te leio quando lembro de nosso passeio à beira da Lagoa lá na querida São Lourenço do Sul. Te leio sempre e sempre, quando declamas outra vez o poema da gare, no Café em Buenos Aires, e me fazes chorar. Te leio quando dizes, rindo muito, que vais dançar no Teatro Colón, e era feriado no Brasil, 7 de setembro, e nós poetávamos pelo Mercosul, numa tarde de sol e delicadeza na Argentina.
Enfim, há cinco meses descobri teu site, teu blog, e desde então ensaio um comentário, pequenas e poucas palavras, e hoje, pensando em gente que passa, gente que fica, resolvi dizer a você que quase vinte anos nos separam daqueles dias em Buenos Aires, Montevideo, Porto Alegre, Pelotas, São Lourenço, Punta del Este, mas faço questão de palavrear aqui, para te saberes lembrada por mim, para sempre. Tanta gente há que passa. Pouca gente há que fica. Você é uma dessas poucas, mesmo que nem lembre de mim.
Guarde minha lembrança carinhosa, querida poeta e estrela. Abraços.

Maria Alice Estrella disse...

Anelise
Que coisa linda receber teu comentário! Manda teu email p/ que eu possa te escrever!
Bjos
Maria Alice