27 maio 2013


EFEITOS COLATERAIS

  Raramente leio a bula de uma medicação. Por várias razões não o faço. Uma delas, confesso, é a preguiça de esmiuçar uma linguagem que desconheço com termos em latim. Outro motivo é o de que vou descobrir, por certo, uma enormidade de efeitos colaterais assustadores que, de certa forma, anulam os efeitos benéficos a que se propõe o remédio. E, consequentemente, posso ficar frente a um impasse que prefiro evitar.
         Lembro que meu avô, farmacêutico e sábio, repetia as palavras de um alquimista suíço: “Só a dose faz o veneno." Deduzo, pois, que tudo é simples questão de dose. Mesmo assim, não é possível evitar os efeitos paralelos e nocivos de toda e qualquer substância.
         Indo mais além, mudando o prisma para o plano das relações humanas, proporciono a mim mesma um vôo nas asas audaciosas que, comumente, me acompanham nesse ofício de explanar percepções através da escrita. E o pensamento viaja, cruzando espaços e mergulhando no tempo.
         Quieta, muito quieta, com uma mão segurando o queixo, pensativa enquanto a outra mão dedilha as teclas, vou revendo e ponderando inúmeras situações em que os efeitos danosos se tornam maiores do que os salutares.
         Amores e afetos que extrapolam a dose certa.  Transformam-se em venenos letais. Seus efeitos colaterais maléficos são maiores do que os favoráveis e, assim, anulam a essência do básico propósito do querer bem.
         E se deixa de querer estar junto, se abandona a vontade de partilhar. Rasga-se o peito, rasgam-se fotografias desfiguradas e papéis inúteis e dos farrapos se faz uma fogueira. As cinzas, o vento se encarrega de espalhar.
         A melhor definição de efeitos colaterais danosos, de que tenho conhecimento, foi muito bem detalhada no poema Aprendizado de Affonso Romano de Sant’Anna: “Estou aprendendo a enterrar amigos,/ corpos conhecidos,/ e começo as lições de enterrar alguns tipos de esperança./ Ainda hoje/ sepultei um braço e um desejo de vingança./ Ontem, fui mais fundo:/ sepultei a tíbia esquerda/ e apaguei  três nomes da lembrança.”
         Nas linhas e entrelinhas do poema se percebe a perícia do autor em retratar o resultado dos males ocasionados por relações que não juntam, mas separam.  Relações em que o apropriado a fazer é a ruptura completa.
         O efeito benéfico se dissipa em meio ao vendaval de estragos. Palavras e gestos usados sem cuidado, em doses maciças, envenenam tanto o relacionamento, quanto a escassez e a falta de gestos e palavras. 
Errôneas posturas e atitudes quebram o cristal do afeto, irreparavelmente.
Acertar a dose exata é questão de saber pisar leve na alma do outro. Toda a cautela é pouca.
         Pois, como disse Amado Nervo: “Se una espina me hiere, me aparto de la espina.” (Se um espinho me fere, me afasto do espinho).
         Melhor assim. Mais sensato evitar os danos dos efeitos colaterais sob qualquer circunstância, em todo tempo e lugar.  Danos marginais, paralelos que, em determinadas situações, em algum momento, se tornam indesejáveis e, perfeitamente, descartáveis, afinal.  Que valha o bom senso e o equilíbrio para interromper efeitos adjacentes desagradáveis até onde seja permissível e necessário.
É sábio por um ponto final na frase que acabou, no afeto que sofreu solução de continuidade.  Antes tarde do que nunca!
Enterrem-se, pois, quaisquer tipos de esperança e se apaguem alguns nomes da lembrança.
        

        

         

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