01 junho 2021

TURBULÊNCIAS

 


TURBULÊNCIAS

Maria Alice Estrella

 

         Mudaram os tempos e com eles se transformou também a maneira de comunicar acontecimentos.

         Houve época em que nas aeronaves de passageiros se ouvia o aviso dado por um dos tripulantes de voo de que os cintos de segurança precisavam ser afivelados porque o avião sofreria alguma turbulência.

         Cerca de 40 anos atrás era comum que as tais turbulências ocorressem de forma inquietante e até assustadora para alguns.    O avião parecia uma cristaleira sacudida por ventos e caindo em vácuos que pareciam não ter fim.

         Quem passou por esse tipo de experiência nunca mais esqueceu, com certeza. Particularmente, lembro de grandes sustos mesmo tendo sempre ouvido de meu pai tripulante aeronáutico que “turbulências não derrubam aviões. ”

         Nos dias atuais, se ouve o aviso de atar cintos “porque passaremos por uma zona de instabilidade. ”

         Agora turbulência passou a ser instabilidade como se pudesse ser trocado o medo e a sensação de insegurança por algo diferente. Instabilidade ou turbulência causam idêntica sensação.  A sensação de que ficamos soltos no ar, apesar de estarmos atados na poltrona, enquanto uma verdadeira orquestra de ruídos estranhos açoita a fuselagem da aeronave é a mesma sensação que vivemos desde março de 2020.

         A turbulência está generalizada dentro e fora de cada um.  A gente tenta colocar os pés no chão, mas está muito difícil manter o equilíbrio.

         Mais de um ano se passou e parece que o grão de areia da ampulheta das horas ficou trancado no êmbolo, estrangulando o tempo. Angustiantes dias sentados na sala de espera em busca do milagre da imunidade.

         Tudo virado do avesso, mostrando o lado frágil de todos.  E de certa forma ao expor nossos medos vestimos roupagens de coragem e atamos os cintos para atravessar a zona de turbulência, que dá a impressão de não ter fim.

         A ordem que vem de dentro do peito é a de que eu siga acreditando que tudo vai melhorar, na instabilidade do espaço entre um passo e outro, porque a esperança é o que me faz guerreira valente nessa luta conturbada e desigual.

         E a luz através da vidraça invade meus olhos e corre solta pelas minhas veias, perpetuando o que as turbulências não afetam nas paisagens que ainda esperam por mim.

         E o meu poeta querido traduziu, sem saber, o que sinto aqui e agora, sempre: “Às vezes tudo se ilumina de uma intensa irrealidade. / E é como se agora este pobre, este único, este efêmero instante do mundo/ Estivesse pintado numa tela, / Sempre. “ (Mario Quintana)

        

23 maio 2021

RECARGA

 


RECARGA

Maria Alice Estrella
O sinal avisava que era preciso conectar o aparelho no carregador.
Obediente, pluguei o cabo e o conectei na rede elétrica.
Imediatamente, surgiu a imagem correlata no meu cérebro. Acontece
quase sempre assim, dessa forma, a ideia para o texto de domingo. Meros
fatos dão origem a pensamentos vários.
Bem que eu gostaria de ter vindo ao mundo com um carregador de
baterias, desses que acompanham os telefones celulares. Quero muito
descobrir de que maneira me é possível recarregar minha bateria.
Os livros de autoajuda proliferam nas estantes das livrarias com mil e
uma receitas e dicas de como reabastecer as energias desgastadas ela
erosão do tempo implacável e dos revezes sem conta.
Eu não quero receitas; quero um carregador portátil que me
acompanhe noite e dia e reponha as minhas forças cada vez que se faça
necessário. E olha que não são poucas! Preciso recuperar o vigor a cada
instante de incerteza, de medo, de expectativa. Nas horas enoveladas entre
o sim e o não, entre o ficar e o partir, entre a solidão e a companhia.
O consumo de energia corporal e espiritual se identifica com o campo
real e o virtual. Esgoto minhas reservas físicas em exercícios de
alongamento e caminhadas. Recupero-me com um banho morno e uma noite
de sono bom. Dissipo meu celeiro de armazenamento emocional em sustos e
angústias. E ainda não descobri um modo de "calibrar o ar dos pneus"
invisíveis.
Haja fôlego!
Sem recarga fica difícil usar o telefone celular. Muito mais difícil
equilibrar o desgaste do corpo e da alma sem via de reabastecimento.
Uma das lições que aprendi nessas estreias cotidianas, entre o abrir e
o fechar de olhos, é de que não existe passe de mágica ou estalar de dedos
que reponha as energias esvaídas.
E "tem dias que a gente se sente como quem partiu", como escreveu o
Chico Buarque. Ninguém escapa dessa sensação, ao menos uma vez na vida.
A nítida impressão de que saímos de nós mesmos para algum lugar que não
existe. Um vazio de estação de trem quando o ultimo deixou a gare e o
silêncio povoa os trilhos.
Para esse momento especifico é que desejo intimamente uma recarga
potente. Vontade de me plugar numa corrente elétrica que acenda luzes na
alma e reabasteça os ânimos. Reanimar o que desfaleceu em mim por
exaustão, por uso demasiado.

Insisto veementemente na necessidade de se ter um aparelho com
mecanismos passíveis de recarregar nossas baterias interiores.
A energia extraordinária e fantástica de que somos feitos é
perecível, infelizmente.
Porém, tenhamos nós a idade que tivermos, usamos engrenagens
criativas para repor as forças tão logo nos sintamos ameaçados e
recobramos o fôlego, sem nos deixarmos abater por falta de energia. É tiro
e queda!
E, por arte de uma boa memória surgem os versos de Gonçalves Dias
para contribuir com meu ponto de vista: "Não chores, meu filho, não chores,
que a vida é luta renhida. Viver é lutar. A vida é combate que aos fracos
abate e aos fortes e aos bravos só pode exaltar."
Esse é, sem dúvida, o meu carregador invisível: a coragem.
E o teu, qual é?







18 maio 2021

GANGORRA


GANGORRA

Maria Alice Estrella

 

         Gangorra é um brinquedo a dois. Indispensável em qualquer praça de divertimento mesmo nas mais modernas.

         Atualmente, a vida está nos colocando numa gangorra. A gangorra de muitas infâncias, de várias juventudes e até de outras idades posteriores.

         Porém, ao invés de estarmos na companhia de algum parceiro amistoso, do outro lado da gangorra está um adversário pandêmico.

          Faço essa associação imediata, quando medito sobre a realidade dos dias de hoje, com o que está acontecendo dentro e fora de nós.

         Estamos descendo e subindo conforme o impulso que conseguimos dar para o alto, enquanto do outro lado vem o impacto do vírus que nos coloca para baixo.

         As reações que ocorrem no nosso íntimo oscilam entre o otimismo e o pessimismo, entre o medo e a coragem, entre a derrota e a vitória.

         Cada dia que amanhece e nos desperta sadios é um ganho. E a noite nos espreita em silêncio na incerteza do amanhã.

         A gente quer encontrar o equilíbrio em meio ao caos que balança nossa alma. Tentamos lutar contra a ansiedade, querendo que o tempo avance em direção a conquista da liberdade de ir e vir, incólumes, protegidos, vacinados.

         Ninguém está passando por toda essa catástrofe livre, leve e solto. Estamos todos numa arca, tal qual a de Noé, no dilúvio avassalador de um vírus que se multiplica e se replica, ameaçando o planeta Terra.

         Todas as faixas etárias da humanidade estão no mesmo barco sob o jugo desse algoz que veio desagregar e desestruturar o cotidiano em que estávamos inseridos, sem a ameaça dessa contaminação invisível e mortal.

         Uma guerra silenciosa se desenrola indiscriminadamente.  Inexistem abrigos contra os ataques que chegam através de gotículas nocivas. As proteções de que podemos dispor são quase as mesmas de um século atrás: as máscaras e o distanciamento.

         E me pergunto onde e como evoluiu a civilização.

         E respondo a mim mesma que evoluímos na área das pesquisas dos cientistas que são aptos a elaborar os antídotos para nos proporcionar imunidade e, de igual forma, evoluímos nos estudos da área da medicina que, através de seus dedicados profissionais da saúde, salvam vidas no front do combate com os cuidados que estão ao seu alcance. E, também, evoluímos na área das comunicações e da cibernética, que tornam possíveis o contato visual e auditivo, aproximando distâncias dos nossos afetos, enquanto aguardamos o contato do toque e do abraço desejado do fundo da alma.

         Estamos numa gangorra, sem dúvida.  Altos e baixos.  Incertezas e esperanças. Solidão e companhia. Real e virtual.

         Melhor não esmorecer e muito menos perder a bússola da confiança de que chegaremos ao porto seguro para pisar em terra firme longe do sobe e desce da gangorra de agora.       


 

08 outubro 2018

BONITO


Pelas artes e manhas da vida já morei em várias cidades. Porto Alegre, onde nasci; São Leopoldo, Rio de Janeiro, Rio Bonito, São Lourenço do Sul e, atualmente, Pelotas. Cada etapa vivida nesses lugares construiu minha história.
De todas essas cidades guardo gratas lembranças. Cada etapa trouxe (e, ainda, traz) experiências gratificantes.
De uma maneira muito especial, recordo do tempo em que vivi numa pequena cidade do interior do Rio de Janeiro.
Cheguei forasteira, vinda do Sul do Brasil com meus trejeitos e costumes de gaúcha, falando diferente e, mesmo assim, fui me adaptando e sendo aceita como membro da comunidade com a hospitalidade peculiar de um povo que abre os braços para acolher. Bonito isso. Condizendo com o nome dado ao município: Rio Bonito.
Foi lá que meus filhos cresceram. Onde cursaram o jardim da infância e parte do primeiro grau de ensino.
Foi lá que fui premiada pela primeira vez com um poema, lá ensinei balé e ministrei aulas de ginástica rítmica para mais de 100 alunas, lá encontrei com o movimento do Encontro de casais em Cristo e a Renovação Carismática Católica. Sedimentaram-se sementes que até hoje, vez ou outra, frutificam em mim.
O mais bonito de Rio Bonito não se restringe a Serra que a rodeia, nem a proximidade com a região dos Lagos. O mais bonito é que ali me acolheram como se eu fizesse parte da comunidade, desde sempre.  Aceitaram o meu jeito estrangeiro de ser (pois que, gaúchos se tipificam de forma um tanto peculiar), aceitaram minha espontaneidade, receberam a Maria Alice com sua bagagem de outras vivências com a maior naturalidade possível.
Foi lá, também, que comecei amizades que o tempo e, muito menos, a distância não desfez. Amigos queridos que me acompanham no mais íntimo de minhas recordações. Impossível nominar cada um deles no espaço dessa página.
Juntos, rimos bastante, choramos muito, abraçamos, dançamos, trocamos confidências, partilhamos o pão, as dúvidas, os conselhos, as dores e fomos, sem saber, tecendo uma rede de laços intensos e definitivos. Sem dúvida, permanecemos orando intensamente uns pelos outros em intercessão firme e forte.
Pode ser que muitos não saibam do significado de cada um na minha vida. Talvez eu nunca tenha verbalizado o quanto foi boa tal convivência.  E lágrimas de saudade deslizam pelo meu rosto ao relembrar todos. Saudade grata de um tempo em que fui muito feliz. E as essas amizades devo a alegria de tê-las conhecido e convivido por oito anos, que valem uma vida.
O tempo passou, caminhei por outras estradas e vários horizontes, mas, o contato com meus amigos e amigas, conquistados em Rio Bonito, permanece incólume contra a ação da distância física, graças ao avanço das comunicações via Internet e telefonia celular. Sinais dos tempos a meu favor.
Qualquer dia desses vou voltar.... Sei que ainda vou voltar..., para rever e abraçar a todos que me acompanham no coração no cantinho terno, que irriga as minhas veias com a seiva do bem-querer gratuito, que as artes e manhas de viver me presentearam para adornar lembranças com as pedras preciosas de amizades imperecíveis.